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Jovem Cientista | Superando os “intocáveis”: único que lia o material complementar da escola, ele virou pesquisador visitante no governo dos EUA

Segundo da família a se graduar, Luis Guilherme trabalha com manipulação genética para desenvolver vacinas e diagnósticos para leptospirose


Publicado em: 09/08/2023

No terceiro ano do Ensino Médio, Luis Guilherme Virgílio Fernandes era um dos únicos alunos que lia, cheio de curiosidade, os materiais complementares fornecidos pela escola, apelidados de “intocáveis” – porque ninguém queria saber deles. Desde pequeno interessado por biologia, ele lembra de ficar fascinado ao conhecer cientistas que criaram plantas fluorescentes utilizando manipulação genética e pensar: “Quero trabalhar com isso um dia”. Hoje, aos 34 anos, Luis já carrega uma história de 12 anos no Instituto Butantan e atua como pesquisador visitante no Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA, na sigla em inglês).

Segunda pessoa da família a concluir uma graduação, o jovem de Pirajuí, cidade com 25 mil habitantes no interior de São Paulo, cursou Biotecnologia no campus de Araras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Depois, foi para São Paulo fazer iniciação científica no Butantan, onde também fez mestrado, doutorado e pós-doutorado, tudo no Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas, no grupo coordenado pela pesquisadora Ana Lúcia Nascimento.




Pesquisador visitante no Departamento de Agricultura dos EUA, Luis Guilherme trabalha com manipulação genética da bactéria Leptospira


No Instituto, Luis Guilherme desenvolveu uma ferramenta de manipulação genética CRISPR para a bactéria Leptospira, causadora da doença infecciosa febril leptospirose. Com o objetivo de investigar estratégias vacinais, ele identificou as proteínas da bactéria que são responsáveis pela infecção (os chamados fatores de virulência). Ao bloquear a expressão dessas proteínas, a bactéria parou de causar doença.


“Sabendo de quais proteínas a bactéria precisa para provocar a doença, é possível, por exemplo, expressar essas proteínas ou fragmentos delas em outra bactéria e usar como vacina”


Agora, nos Estados Unidos, Luis pesquisa fatores de virulência comuns a outras espécies de Leptospira, para pensar no desenvolvimento de um imunizante universal contra leptospirose. Como a doença também afeta animais (bovinos, suínos e cães), um dos interesses do USDA é criar uma vacina veterinária que ajude a diferenciar os anticorpos de animais vacinados dos infectados, ou seja, que induza uma resposta imune específica.

Mesmo fisicamente distante do Butantan, o cientista continua conectado ao grupo do qual fez parte por mais de uma década. Ele é coorientador de dois alunos, já ajudou a orientar outros dois estudantes e segue participando das reuniões semanais do laboratório. Após o período como visitante no USDA, que deve durar pelo menos um ano, Luis pretende retornar ao Instituto.

“Em nosso grupo no Butantan, todos somos muito amigos. Isso faz toda a diferença na pesquisa: você ter um bom relacionamento com as pessoas”

 

Equipe coordenada pela pesquisadora Ana Lúcia Nascimento, do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Butantan


Trabalho pioneiro

A equipe do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas foi a primeira a utilizar a técnica de edição gênica CRISPR na bactéria Leptospira. Descrito como “muito desafiador” por sua orientadora, o projeto foi proposto por Luis Guilherme durante o pós-doutorado, após ter passado seis meses no Instituto Pasteur, em Paris, estudando ferramentas genéticas.

O primeiro passo foi criar mutantes silenciados, bloqueando a expressão das proteínas que causam a doença. No entanto, esses mutantes não podem ser usados em vacinas, já que o microrganismo pode voltar a expressar o gene silenciado. Luis foi responsável por otimizar a ferramenta para obter mutantes nocauteados, isto é, com o gene totalmente eliminado do material genético.

“A técnica CRISPR funciona ‘deletando’ uma parte do DNA e a bactéria tem que consertar esse trecho com uma nova sequência, mas como a Leptospira não tinha as proteínas necessárias para fazer isso, ela acabava morrendo nesse processo. Então, introduzi as proteínas que ela precisava e, assim, foi possível desenvolver os mutantes nocauteados”, explica.

 

Luis Guilherme e sua orientadora, Ana Lúcia Nascimento, durante a entrega do Prêmio Tese Destaque USP 2019


Vida acadêmica premiada

Aluno nota 10 na escola, Luis conta que sempre quis fazer atividades diferentes e se desafiar, não se contentando em “ficar na mesmice”. Durante a faculdade de Biotecnologia, ele chegou a ser homenageado com o título de Maior Índice de Rendimento Acadêmico. No doutorado, venceu o Prêmio Tese Destaque USP 2019 na categoria Multidisciplinar. Também recebeu os prêmios Jovem Cientista Pós-Doutorado (2018 e 2019) e Inovação em Saúde (2019), concedidos pelo Butantan.

“Minha mãe ficou super orgulhosa. Ela tem uma estante em casa com todos os meus diplomas, prêmios, minha tese de doutorado”


Determinado, o jovem saiu de casa pela primeira vez já no terceiro ano do Ensino Médio: ele cursou o último ano em Bauru para acompanhar os amigos, então passava as semanas lá e voltava para sua cidade natal somente aos finais de semana. Foi um período difícil, especialmente para a mãe de Luis, mas serviu como um “treinamento” para a faculdade, quando o estudante se mudou para Araras. 

O menino que cresceu apaixonado por Jurassic Park e querendo “fazer dinossauro” no futuro não imaginava um dia estar fazendo pesquisa fora do Brasil. Agora, espera aproveitar o máximo dessa oportunidade e voltar para São Paulo no final do ano para a formatura da irmã mais nova, que está concluindo o curso de Medicina.

“Eu gostava muito do ‘intocável’ e fazia os exercícios por prazer. E, no fim, tenho a sorte de trabalhar com aquilo que eu li e que me chamou atenção na época”

 

Reportagem: Aline Tavares

Fotos: Arquivo pessoal